Josué Cândido da Silva*
A figura de Sócrates é como um divisor de águas na Filosofia Antiga, tanto que os filósofos anteriores a ele são tradicionalmente chamados de pré-socráticos.
De fato, com Sócrates há uma mudança significativa no rumo das discussões filosóficas sobre a verdade e o conhecimento. Os primeiros filósofos estavam preocupados em encontrar o fundamento (arké) de todas as coisas. Sócrates, por sua vez, está mais interessado em nossa relação com os outros e com o mundo.
Curiosamente, Sócrates nada escreveu - e tudo o que sabemos dele é graças a seus discípulos, particularmente Platão. Sócrates teria tomado a inscrição da entrada do templo de Delfos como inspiração para construir sua filosofia: Conhece-te a ti mesmo.
Para compreendermos o sentido dessa frase, segundo o filósofo francês Michel Foucault (1926 - 1984), devemos inscrevê-la em uma estratégia mais geral do cuidado de si.
Ou seja, o que Sócrates pregava era que nós devemos nos ocupar menos com as coisas (riqueza, fama, poder) e passarmos a nos ocupar com nós mesmos. Poderia objetar-se: com que propósito deveria ocupar-me comigo mesmo? Porque é o caminho que me permite ter acesso à verdade. Mas que tipo de verdade? Obviamente não é uma verdade qualquer, tal como a fórmula química da água, mas a verdade que é capaz de transformá-lo no seu próprio ser de sujeito.
É esse ato de conhecimento, capaz de promover nossa autotranscendência, de que fala Sócrates. Conhecer a mim mesmo para saber como modificar minha relação para comigo, com os outros e com o mundo.
Como ter acesso à verdade?
Tal modificação para ter acesso à verdade, contudo, não é um ato puramente intelectual. Ela exige, por vezes, determinadas renúncias e purificações, das quais Sócrates é um exemplo.
Sócrates dizia ter recebido de Deus a missão de exortar os atenienses, fossem eles velhos ou jovens, a deixarem de cuidar das coisas, passando a cuidar de si mesmos. Tal atitude o fez dedicar-se inteiramente à filosofia e à prática dialógica (uma forma especial de diálogo, denominada maiêutica) por meio da qual ele fazia com que seu interlocutor percebesse as inconsistências de seu discurso e se autocorrigisse.
A atitude de Sócrates questionava os valores da sociedade ateniense, razão pela qual seus inimigos o levaram ao tribunal, onde foi julgado e condenado à morte. Sua morte, porém, não impediu que a questão do cuidado de si se tornasse um tema central na filosofia durante mais de mil anos - e chegasse a influenciar alguns filósofos modernos e contemporâneos.
A questão central do cuidado de si é que jamais se tem acesso à verdade sem uma experiência de purificação, de meditação, de exame de consciência - enfim, através de determinados exercícios espirituais capazes de transfigurar nosso próprio ser.
Dito de outro modo, o estado de iluminação, de descoberta da verdade, não é produto do estudo, mas de uma prática acompanhada de reflexão constante sobre minhas ações, atitudes - e de como posso modificá-las para me tornar uma pessoa melhor. É como se a vida fosse uma obra de arte em que nós vamos nos moldando, nos aperfeiçoando no decorrer da existência.
A difícil busca da verdade
Atualmente, estamos distantes dessa perspectiva socrática do cuidado de si. A ciência moderna está preocupada com a produção e acumulação de conhecimentos.
Mas quando nos perguntamos: para quê acumulamos e produzimos conhecimento? A resposta é simplesmente: para aumentar infinitamente nosso conhecimento. Entramos, assim, numa corrida sem fim, em que nunca nos questionamos se isso realmente está trazendo os benefícios prometidos.
Claro que a tecnologia traz inegáveis benefícios, mas não parece que as pessoas, atualmente, estejam mais felizes. Pode-se alegar, no entanto, que não é papel do conhecimento e da ciência promover a felicidade humana - e que, talvez, conhecimento e ciência tenham a única função de contribuir para a concentração de poder e dinheiro nas mãos de alguns uns poucos.
Sócrates, porém, via a busca da verdade como um caminho de ascese, pois, quando cuidamos de nós mesmos, modificamos nossa relação com os outros e com o mundo.
Mergulhados em preocupações com a aparência e o consumo, pensamos estar cuidando de nós mesmos, quando na verdade estamos nos perdendo em meio às coisas. É preciso conhecer a si mesmo para não perder-se. Claro que você não vai encontrar toda verdade em si mesmo, mas, pelo menos, a única verdade capaz de salvá-lo.
O que há para ler
Do filósofo Michel Foucault, a obra A hermenêutica do sujeito, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.
F:http://educacao.uol.com.br/filosofia/conhece-te-a-ti-mesmo.jhtm
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